Quando soube que fora condenado,
mandou recado para as amigas, que foram chegando. Maria Madalena e Suzana foram
as primeiras. Depois vieram as outras.
Olhou para ele, carregando a barra
superior até o topo, desde a rua, e chorou.
-- Não chore, Maria. Deus ainda vai
fazer alguma coisa. Nada disto vai acontecer.
-- Como não vou chorar, Joana, é o
meu filho que vai morrer. Eu sei que ele vai morrer.
Maria precisou se encostar um pouco
na rocha para não cair. João a amparou.
Fechou os olhos para não ver as cenas
da crucificação. Ouvia-se longe os pregos entrando na madeira, os gritos de dor
com os cravos furando as mãos.
Foi rápido. Os romanos eram bons
nisto.
Era preciso tampar os ouvidos para
não escutar os sons da crueldade.
"Se ele é mesmo o filho de Deus,
por que não desce?"
"Vou ficar com a túnica
dele".
"Não, vamos fazer um sorteio
para ver quem leva".
Maria teve vontade de dizer:
-- Vocês não estão vendo o sofrimento
dele? Ainda se divertem!
Precisou se calar.
Quase sempre precisou se calar.
Quando o seu menino nasceu, os
pastores vieram visitá-lo em Belém; eles falaram muito, mas Maria ficou calada.
Quando o seu menino ficou para trás,
quando vieram a Jerusalém, há quase 20 anos, José o repreendeu. Maria sentia
que as palavras do pastores de Belém começavam a fazer sentido. Por isto, ficou
calada. Não podia falar.
Quando o seu menino pediu para ser
batizado pelo primo, João, ela apoiou. Quando ele voltou, eufórico, de
Betânia-além-do-Jordão, repetindo as palavras que ouviu do céu, ela não disse
nada.
Quando transformou água em vinho,
perto de casa, não estranhou a resposta dele.
Quando ele pediu para que mudassem
para Cafarnaum, eles saíram todos de Nazaré, embora suas irmãs reclamassem.
Quando os irmãos do rapaz foram atrás
dele por achar que estava com problemas mentais, ela foi e, sem palavras,
conseguiu mostrar-lhes que o caminho dele era diferente.
Quando ele decidiu vir para
Jerusalém, ela não argumentou, mesmo supondo que o fim estava próximo; ela não
pediu que não viesse. Ele sabia o que estava sabendo.
Quando ele deixou Betânia perto da
Páscoa, para vir a Jerusalém, ela não lhe pediu para ficar um pouco mais na
casa de Marta e Maria.
Agora a dor do seu filho era intensa
demais. Ela via a dor. Estava nos seus olhos que o sangue cobria, nos lábios
ressecados pelo vento. Ele lhe contara um dia como foi difícil ficar 40 dias no
deserto, sem comer e beber, mas agora não tem tinha anjo nenhum a confortá-lo.
Maria abria os olhos e fechava.
Quando fechava, ela via o filho que ela amamentou. Via os anos no Egito,
difíceis também. Agora era diferente. Naquele tempo, havia esperança, mas e
agora? Voltar a Nazaré, começar a vida de novo, José buscando novos clientes,
os filhos que foram chegando, José indo e vindo a Séforis em busca de trabalho,
a doença de José, sua morte, o sofrimento de Isabel quando Zacarias morreu,
Jesus fugindo de Nazaré, o sonho dele de um mundo de pessoas que se amassem, as
semanas fora pregando pelas aldeias, os que vinham para saber mais, os
discípulos que ele foi fazendo, as curas no sábado, as parábolas que criou, as
madrugadas longe de casa em oração, a dor da sua prima quando também João foi
assassinado daquela maneira tão espetacular em Maqueronte ("a vida não
vale nada"), o modo como acolheu os discípulos do primo, os pães e os peixes
em Tabgha, a mulher que ficou livre da sua hemorragia, a mulher que teve o
filho de volta vivo em Naim, a menina perto de Sidon que ficou livre dos seus
demônios, nosso amigo Lázaro, o medo que as pessoas tinham de César não gostar
do que estava acontecendo na Galileia.
Maria se lembrava de duas vezes que
teve falar com ele sobre o que fazia:
-- Filho, cuidado com Judas. Ele pega
o dinheiro de vocês.
Ele ouviu, mas não disse nada.
-- Filho, evite as pessoas duvidosas.
O que gente como Zaqueu e Simão o Leproso quer com você? Vão levar você a mal.
Para que jantar com eles?
Ele sorriu, abraçou Maria e comentou
brevemente, antes de sair:
-- Mãe, eles têm sede. Tem lugar para
eles na mesa.
Agora, daqui a pouco tudo seria
apenas memória. Maria abriu os olhos. Precisava ficar com os olhos abertos. Ele
podia precisar dela.
O barulho era forte. De repente, o
céu começou a se encher de trovões. Medo. Silêncio.
Jesus estava dizendo algumas
palavras.
Maria não ouviu bem.
-- O que ele disse, Salomé?
Acho que ele pediu água.
Então, quando repetiu, deu para
ouvir:
-- Estou com sede.
Maria se agitou. Saiu de lado.
-- Quero falar com o centurião. --
Disse a um soldado.
-- A senhora não vai falar com o
centurião. Fale comigo mesmo. Sou o tenente aqui.
-- Tenente, meu filho está com sede.
Desde ontem à noite, quando o prenderam, que não deram água para ele. Você acha
isto justo?
-- Minha senhora, se é justo eu não
sei. Eu cumpro ordens. Se o centurião autorizar...
E saiu, antes de terminar a frase.
ISRAEL BELO DE AZEVEDO
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